Jul 1, 2013

Mas bem que eu gostaria que fossem

Você transformou meu gosto pelo cigarro imaginário em câncer real. Você manchou minha língua com uma nicotina amarga, enegreceu meu cérebro. Eu sou de uma desumanidade tremenda ao comparar meu drama com uma doença tão bárbara quanto o vício. Mas o que seria da dor senão fosse a metáfora? Digo, o que seria do ser ‘patético poético’ humano que esconde todo o seu naturalismo, o seu instinto e a sua caça em cima análises e convenções? Você fez do meu ego um brinquedo. Um brinquedo terrível, daqueles que as tias velhas oferecem aos pequenos mais travessos. Um brinquedo que não quebra. Algo molenga, como uma gelatina colorida artificialmente, que você pode jogar na parede ou de cima de um prédio, tanto faz. Você junta, reúne os pedaços e brinca novamente, até perder o interesse e amarrar latas na cauda do cachorro. Mais do que um brinquedo, eu fui a própria humilhação, com meus olhos tristes e carnosos, bem na sua frente. Eu fui a personificação da personificação. Mas você não teve a menor consciência disso enquanto se transformava numa célula quimioterápica mutante. Eu sou mais do que o teu amor de proveta, eu sou um amor de estupro. Indesejado, um amor que você deveria sentir, mas não sente. Que você sabe que te faz bem, mas não cura. Uma falência múltipla de todos os corações molengas que você brincou e abandonou durante a sua vida mesquinha e idiota. Eu sei da tua hiperatividade e da tua depressão, sei dos teus devaneios, sei da tua poesia e dos teus palavrões. Sei inclusive que a tua beleza é uma enorme baixaria, uma tarja preta. Ditadura de criança travessa, pai e mãe não levam a sério. Greve de fome de um mendigo revoltado, ninguém se comove. Morte de um velho decrépito, todo mundo esperava. Mas “todo mundo” se surpreende com o senhor da vida pacata que morreu de câncer no pulmão sem nunca ter colocado uma droga de cigarro na boca. Mais do que anunciado, nossa morte foi um evento censurado. As palavras que eu escrevo agora, no entanto, não são pra você. Mas bem que eu gostaria que fossem.
—  Cinzentos 

No comments:

Post a Comment

Buuuuu